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quinta-feira, 16 de abril de 2009

Um dia na minha infância


Um dia na minha infância ::

Lygia Bradnick



Eu tenho oito anos. Levanto cedinho com o sol entrando no meu quarto no terracinho em que moro. Meu uniforme azul e branco do Grupo Escolar Rodrigues Alves está passado ao lado da minha cama. Meu irmãozinho entra no quarto vestido só de fraldas e eu brinco um pouco com ele enquanto me visto para a escola.Café com leite e pão com manteiga, lanche na lancheirinha plástica, garrafinha com Chocoleite ou uma Grapete, lá vou eu ladeira do Paraíso acima, de mão dada com meu pai. Atravessamos a Vergueiro, andamos pelas ruazinhas estreitas cheias de lojas até o Grupo Escolar. O Viaduto 23 de Maio ainda estava no futuro!Aceno para o meu pai na porta da escola, corro pra dentro, não gosto de chegar atrasada na fila. Dona Ida Correia Porto, toda vestida de preto, austera, de meter medo, já está à espera das meninas. A Ana Elizabete já chegou, cabelinho liso cortado à tigela, Albana, loirinha de rabo de cavalo, Neide, gordinha e preguiçosa, estas três são minhas amiguinhas preferidas.Na classe, sentamos em carteiras enormes de madeira escura. Não se ouve um pio, pois a Dona Ida não é de brincadeira. Abrimos nossos cadernos de capa azul, pegamos nossos lápis e borrachas e assim começa mais uma aula. Detesto aritmética, vivo para fazer redações.Hora do lanche, corremos para o pátio, que nos parece tão grande. Comemos tudo da lancheira, mas se alguém está com fome, sempre dividimos o que temos. De um tacho enorme no pátio serve-se pão com carne moída para as que não podem trazer lanche de casa. Às vezes, conseguimos enganar a pessoa que preside o tacho e conseguimos um pãozinho com carne e molho, que sempre é delicioso.Brincamos de piques, de mãe da rua, de pular corda, até o sinal tocar.Às duas horas minha mãe vem me buscar, trazendo meu lindo irmãozinho que eu adoro. Ela anda da Rua Nilo até a Paulista com ele no colo e volta, todos os dias. Ele não tem carrinho de nenê, acho que ninguém tem.Chegamos em casa, troco meu uniforme e vou para o Tênis Clube Paulista brincar com a Bete. Minha mãe vai lavar roupa no tanque. Às seis horas devo estar de volta para jantar, mas até ela tem muito tempo para brincar no parquinho, de pegador, de esconde-esconde, e, precocemente, de espiar o Paulo e o Esmar jogando tênis. Eles têm doze e treze anos e nos parecem adultos. Muitas vezes carrego a minha boneca comigo, e a Bete traz a dela, mas ultimamente tenho me envergonhado da boneca e a embrulho num jornal para que os meninos não a vejam.Às seis horas volto pra casa, já está escurecendo. Algumas estrelas já aparecem, a noite vem vindo rapidamente. A luz da minha casa já está acesa, minha mãe está sentada à porta segurando meu irmão e conversando com as vizinhas. Na cozinha encontro um prato de sopa de aveia e pão. Esta é a nossa janta costumeira e graças a Deus eu gosto muito da tal sopa.Depois disso tomo um chuveiro, coloco meu pijama. Não temos televisão, mas ouço rádio. Tenho livros e meu pai tem muitos livros, da coleção Saraiva, e uma coleção enorme de Seleções, portanto leio avidamente, como faria por toda a vida.Às dez horas, vou dormir. Meu quarto é quieto e simples, uma colcha rosa na cama, um guarda roupa pequenino, meus livros numa mala esperando a estante que parece nunca chegar. Minhas bonecas dormem ao meu lado. Da janela do meu quarto às vezes espio a lua e o quintal do vizinho, seu Eurico, dono de uma casa enorme na esquina da Nilo com a Paraíso, cujo quintal dá para o meu. Seu Eurico tem dois filhos gêmeos de dez anos, e eles estão sempre conversando comigo pelo muro. Eu os acho feios e prefiro o Esmar, o tenista!Meia-noite, meu irmãozinho está chorando, minha mãe está cantando ‘Boi, boi, boi, boi da cara preta...’.Depois, silêncio novamente. E eu durmo, porque sou uma criança feliz, tenho o amor dos meus pais e avós, tenho meu irmãozinho tão precioso, e embora não tenhamos nada materialmente, temos uns aos outros, o pão de cada dia, e eu tenho três bonecas! Que mais posso desejar?

2 comentários:

  1. QUE SAUDADE DA MINHA INFANCIA QUERIDA!
    SAUDADE DO MEU PAI,MINHA,MÃE MEU IRMÃO!
    TUDO FICOU NA SAUDADE!
    OBRIGADO MEU DEUS,POR NOS DAR A MEMÓRIA,NOSSA CAIXINHA DAS LEMBRANÇAS QUERIDAS!

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  2. Esse texto, ou melhor, esse depoimento lembra aquele texto do Quintana. Para sermos felizes, realmente felizes não precisamos desejar ou nos distrair desejando sempre mais bens materiais. Se olharmos em volta veremos quão preciosas e sem preço são as coisas que já possuímos e o que realmente importa é o carinho e a convivência com as pessoas que amamos.
    Ana Paula

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