Um dia na minha infância ::
Lygia Bradnick
Eu tenho oito anos. Levanto cedinho com o sol entrando no meu quarto no terracinho em que moro. Meu uniforme azul e branco do Grupo Escolar Rodrigues Alves está passado ao lado da minha cama. Meu irmãozinho entra no quarto vestido só de fraldas e eu brinco um pouco com ele enquanto me visto para a escola.Café com leite e pão com manteiga, lanche na lancheirinha plástica, garrafinha com Chocoleite ou uma Grapete, lá vou eu ladeira do Paraíso acima, de mão dada com meu pai. Atravessamos a Vergueiro, andamos pelas ruazinhas estreitas cheias de lojas até o Grupo Escolar. O Viaduto 23 de Maio ainda estava no futuro!Aceno para o meu pai na porta da escola, corro pra dentro, não gosto de chegar atrasada na fila. Dona Ida Correia Porto, toda vestida de preto, austera, de meter medo, já está à espera das meninas. A Ana Elizabete já chegou, cabelinho liso cortado à tigela, Albana, loirinha de rabo de cavalo, Neide, gordinha e preguiçosa, estas três são minhas amiguinhas preferidas.Na classe, sentamos em carteiras enormes de madeira escura. Não se ouve um pio, pois a Dona Ida não é de brincadeira. Abrimos nossos cadernos de capa azul, pegamos nossos lápis e borrachas e assim começa mais uma aula. Detesto aritmética, vivo para fazer redações.Hora do lanche, corremos para o pátio, que nos parece tão grande. Comemos tudo da lancheira, mas se alguém está com fome, sempre dividimos o que temos. De um tacho enorme no pátio serve-se pão com carne moída para as que não podem trazer lanche de casa. Às vezes, conseguimos enganar a pessoa que preside o tacho e conseguimos um pãozinho com carne e molho, que sempre é delicioso.Brincamos de piques, de mãe da rua, de pular corda, até o sinal tocar.Às duas horas minha mãe vem me buscar, trazendo meu lindo irmãozinho que eu adoro. Ela anda da Rua Nilo até a Paulista com ele no colo e volta, todos os dias. Ele não tem carrinho de nenê, acho que ninguém tem.Chegamos em casa, troco meu uniforme e vou para o Tênis Clube Paulista brincar com a Bete. Minha mãe vai lavar roupa no tanque. Às seis horas devo estar de volta para jantar, mas até ela tem muito tempo para brincar no parquinho, de pegador, de esconde-esconde, e, precocemente, de espiar o Paulo e o Esmar jogando tênis. Eles têm doze e treze anos e nos parecem adultos. Muitas vezes carrego a minha boneca comigo, e a Bete traz a dela, mas ultimamente tenho me envergonhado da boneca e a embrulho num jornal para que os meninos não a vejam.Às seis horas volto pra casa, já está escurecendo. Algumas estrelas já aparecem, a noite vem vindo rapidamente. A luz da minha casa já está acesa, minha mãe está sentada à porta segurando meu irmão e conversando com as vizinhas. Na cozinha encontro um prato de sopa de aveia e pão. Esta é a nossa janta costumeira e graças a Deus eu gosto muito da tal sopa.Depois disso tomo um chuveiro, coloco meu pijama. Não temos televisão, mas ouço rádio. Tenho livros e meu pai tem muitos livros, da coleção Saraiva, e uma coleção enorme de Seleções, portanto leio avidamente, como faria por toda a vida.Às dez horas, vou dormir. Meu quarto é quieto e simples, uma colcha rosa na cama, um guarda roupa pequenino, meus livros numa mala esperando a estante que parece nunca chegar. Minhas bonecas dormem ao meu lado. Da janela do meu quarto às vezes espio a lua e o quintal do vizinho, seu Eurico, dono de uma casa enorme na esquina da Nilo com a Paraíso, cujo quintal dá para o meu. Seu Eurico tem dois filhos gêmeos de dez anos, e eles estão sempre conversando comigo pelo muro. Eu os acho feios e prefiro o Esmar, o tenista!Meia-noite, meu irmãozinho está chorando, minha mãe está cantando ‘Boi, boi, boi, boi da cara preta...’.Depois, silêncio novamente. E eu durmo, porque sou uma criança feliz, tenho o amor dos meus pais e avós, tenho meu irmãozinho tão precioso, e embora não tenhamos nada materialmente, temos uns aos outros, o pão de cada dia, e eu tenho três bonecas! Que mais posso desejar?
Lygia Bradnick
Eu tenho oito anos. Levanto cedinho com o sol entrando no meu quarto no terracinho em que moro. Meu uniforme azul e branco do Grupo Escolar Rodrigues Alves está passado ao lado da minha cama. Meu irmãozinho entra no quarto vestido só de fraldas e eu brinco um pouco com ele enquanto me visto para a escola.Café com leite e pão com manteiga, lanche na lancheirinha plástica, garrafinha com Chocoleite ou uma Grapete, lá vou eu ladeira do Paraíso acima, de mão dada com meu pai. Atravessamos a Vergueiro, andamos pelas ruazinhas estreitas cheias de lojas até o Grupo Escolar. O Viaduto 23 de Maio ainda estava no futuro!Aceno para o meu pai na porta da escola, corro pra dentro, não gosto de chegar atrasada na fila. Dona Ida Correia Porto, toda vestida de preto, austera, de meter medo, já está à espera das meninas. A Ana Elizabete já chegou, cabelinho liso cortado à tigela, Albana, loirinha de rabo de cavalo, Neide, gordinha e preguiçosa, estas três são minhas amiguinhas preferidas.Na classe, sentamos em carteiras enormes de madeira escura. Não se ouve um pio, pois a Dona Ida não é de brincadeira. Abrimos nossos cadernos de capa azul, pegamos nossos lápis e borrachas e assim começa mais uma aula. Detesto aritmética, vivo para fazer redações.Hora do lanche, corremos para o pátio, que nos parece tão grande. Comemos tudo da lancheira, mas se alguém está com fome, sempre dividimos o que temos. De um tacho enorme no pátio serve-se pão com carne moída para as que não podem trazer lanche de casa. Às vezes, conseguimos enganar a pessoa que preside o tacho e conseguimos um pãozinho com carne e molho, que sempre é delicioso.Brincamos de piques, de mãe da rua, de pular corda, até o sinal tocar.Às duas horas minha mãe vem me buscar, trazendo meu lindo irmãozinho que eu adoro. Ela anda da Rua Nilo até a Paulista com ele no colo e volta, todos os dias. Ele não tem carrinho de nenê, acho que ninguém tem.Chegamos em casa, troco meu uniforme e vou para o Tênis Clube Paulista brincar com a Bete. Minha mãe vai lavar roupa no tanque. Às seis horas devo estar de volta para jantar, mas até ela tem muito tempo para brincar no parquinho, de pegador, de esconde-esconde, e, precocemente, de espiar o Paulo e o Esmar jogando tênis. Eles têm doze e treze anos e nos parecem adultos. Muitas vezes carrego a minha boneca comigo, e a Bete traz a dela, mas ultimamente tenho me envergonhado da boneca e a embrulho num jornal para que os meninos não a vejam.Às seis horas volto pra casa, já está escurecendo. Algumas estrelas já aparecem, a noite vem vindo rapidamente. A luz da minha casa já está acesa, minha mãe está sentada à porta segurando meu irmão e conversando com as vizinhas. Na cozinha encontro um prato de sopa de aveia e pão. Esta é a nossa janta costumeira e graças a Deus eu gosto muito da tal sopa.Depois disso tomo um chuveiro, coloco meu pijama. Não temos televisão, mas ouço rádio. Tenho livros e meu pai tem muitos livros, da coleção Saraiva, e uma coleção enorme de Seleções, portanto leio avidamente, como faria por toda a vida.Às dez horas, vou dormir. Meu quarto é quieto e simples, uma colcha rosa na cama, um guarda roupa pequenino, meus livros numa mala esperando a estante que parece nunca chegar. Minhas bonecas dormem ao meu lado. Da janela do meu quarto às vezes espio a lua e o quintal do vizinho, seu Eurico, dono de uma casa enorme na esquina da Nilo com a Paraíso, cujo quintal dá para o meu. Seu Eurico tem dois filhos gêmeos de dez anos, e eles estão sempre conversando comigo pelo muro. Eu os acho feios e prefiro o Esmar, o tenista!Meia-noite, meu irmãozinho está chorando, minha mãe está cantando ‘Boi, boi, boi, boi da cara preta...’.Depois, silêncio novamente. E eu durmo, porque sou uma criança feliz, tenho o amor dos meus pais e avós, tenho meu irmãozinho tão precioso, e embora não tenhamos nada materialmente, temos uns aos outros, o pão de cada dia, e eu tenho três bonecas! Que mais posso desejar?